Meu caminho para Santiago de Compostela

Lá pelos idos de 2002 eu quis fazer o caminho espanhol a Santiago de Compostela, mas por um motivo e outro acabei por não me juntar ao grupo que efetivamente foi.

Em 2024, com um joelho que volta e meia “some”, eu já havia me conformado com a ideia que esta aventura eu não vivenciaria. Mas a vida está aí para provar o contrário. Como diz John Lennon em “Beautiful Boy”, “life is what happens to you while you’re busy making other plans…”. E assim foi.

Minha irmã Verinha surgiu com a ideia de percorrer o caminho português da costa até Santiago, com o mar e a brisa gelada do norte nos acompanhando. Pedi uns dias para pensar e enfim pensei: WTF! Vamos! Se não conseguirmos chegar lá, Flora nos resgata no caminho.

Fui na Decathlon onde me deparei com uma seção dedicada ao caminho de Santiago e lá adquiri o bastão, a mochila, roupa, e uma capa de chuva do peregrino que acabei por devolver pois minha irmã disse que levaria uma leve para mim.

Às 5 da manhã de 21 de Agosto, chamamos um Uber para nos levar até o ponto de partida – Leça da Palmeira, em frente a Piscina das Marés.

O motorista do Uber, muito gentil, iniciou conversa e perguntou se iríamos sozinhas ou em grupo. Íamos sós. Nós e nossas mochilas.

Nesse momento o primeiro medo de mulher viajando sozinha se apresentou em minha cabeça e imediatamente eu emendei, “sozinhas é modo de dizer, nossa família está nesse momento acompanhando nossos movimentos por GPS em tempo real.”

Vimos o dia clarear no caminho para Vila do Conde, nosso destino do dia e passamos pelo marco da Praia da Memória, onde o nosso D. Pedro I do Brasil e IV de Portugal desembarcou em 8 de julho de 1840 com 7.500 homens para lutar contra seu irmão D. Miguel e garantir o regime constitucionalista e a coroa para sua filha D. Maria II.

Antes de chegarmos a Vila do Conde nos deparamos com um trecho de passadiço interditado, o que implicaria num desvio grande por vias interiores. Mas diante de uma vasta praia de areia lisa e firme, decidimos descer e ir pela areia, bem junto ao mar. Não fosse a bota e tudo mais a vontade era mesmo um mergulho, pois embora a água ser bem gelada, o calor era intenso.

Chegamos em Azurara em Vila do Conde e fomos direto para a igreja buscar nosso carimbo. A igreja estava fechada, como muitas no caminho, mas uma padaria próxima tinha o carimbo.

De lá fomos para o nosso hotel já reservado. O Mosteiro de Santa Clara.

Se por um lado foi uma das melhores decisões da viagem, também gerou problemas, pois depois de uma noite no mosteiro, nada se compara.

O mosteiro de 1318 foi fundado por D Afonso Sanches, filho bastardo de D. Dinis  e sua esposa D Teresa Martins, que criaram Inês de Castro, embora a construção que vemos hoje seja posterior. Hoje virou um hotel de luxo belíssimo, muito bem restaurado e preservado.

Para deixar Vila do Conde no dia seguinte tivemos alguma dificuldade para localizar as setas para Santiago, o que implicou em perguntarmos pelo caminho sobre que direção seguir. E uma curiosidade ficou evidente; por mais que perguntássemos a portugueses em português, invariavelmente nos respondiam primeiro em inglês ou perguntavam qual idioma nós falávamos. Um fenômeno que não conseguimos desvendar e que se repetiu durante o caminho.

De Vila do Conde fomos para Esposende e este percurso, embora lindo e cheio de moinhos na beira do mar, se mostrou desafiante pois há um longo trecho de passadiços que ladeia um campo de golfe sem nenhuma referência de que estamos chegando a qualquer lugar. Se não carregar água suficiente este trecho será bem penoso no calor intenso.

Ao chegarmos em Ofir, nos hospedamos no hotel Axis. Estávamos mesmo exaustas e dali tomamos uma importante decisão. Iríamos modificar nossos planos e reiniciar o caminho desde Vigo, já na Espanha, ainda assim caminhando mais de 100 km sem parar até o destino Santiago.

Um casal amigo que vive em Esposende, o Paulo e a Susana, nos levou até Caminha e de lá partimos para Vigo, onde começamos então a seguir as setas do caminho, até que erramos.

Fomos então ajudados por um senhor que foi explicando os lugares  por onde deveríamos passar até retornar aos “trilhos” corretos.

Isso significava subir, subir, subir, passando pelo caminho da via verde do ônibus, passar por baixo da antigo caminho de trem e seguir até um estrada no meio da floresta de onde se poderia avistar toda a baía.

Fizemos quase tudo certo, mas não acreditamos que teríamos que subir ainda mais do que já havíamos subido e seguimos pela estrada de carros.

Minha irmã parou então para perguntar a uma senhora se estávamos no caminho certo ao que ela informou que não, e que teríamos que subir o morro para cruzar a floresta.

Eu não acreditei. Falei que não era provável, que a senhora nem desejou buen camino e que devíamos seguir em frente.

Seguimos até o momento em que tivemos que parar para colocar band-aid no pé e sentamos num ponto de ônibus.

Eis que para um ônibus e descem algumas pessoas, dentre elas uma senhora com um moletom escrito “Camino de Santiago” com todas as paradas assinaladas.

Era outro anjo do caminho que seguramente concluiu que para duas caminhantes tão parvas, ela teria que se apresentar “uniformizada” para acreditarmos na dica. A senhora então corrigiu nossa rota e sim, subimos a tal montanha onde então passamos a ter a companhia de outros peregrinos mais orientados do que nós.

Continuamos então nosso caminho até Redondela, onde não tínhamos hotel reservado pois minha irmã viu no app do Booking.com que havia muita oferta.

 Estávamos mesmo cansadas. Um percurso que deveria ser de 16 km, pelos erros, se transformou em 20km.

Mas chegamos em Redondela no mesmo fim de semana que comemoravam um famoso carnaval de fim de verão, ou seja, não havia quartos disponíveis.

Fomos de porta em porta em hotéis e albergues até que o albergue A Conserveira nos aceitou!

Devo dizer que foi minha melhor noite no caminho. Dormi a noite inteira. Ficamos num quarto só nosso, apesar de o quarto possuir 4 camas, com um banheiro só nosso e um ar condicionado perfeito no segundo andar de escadas.

Depois de subir as escadas e chegarmos no quarto nos demos conta de que não havíamos comido durante o dia e que não tínhamos água. Porém não tínhamos força para descer para comprar algo e depois subir novamente os dois andares. Ficou para o dia seguinte mesmo.

De Redondela seguimos para Pontevedra pela rota XIX romana. Esta estrada romana do tempo do Imperador Augusto, ligava  Bracara Augusta (Braga) a Asturica Augusta (Astorga) percorrendo 299 milhas romanas, aproximadamente 481km.

Durante este percurso choveu! Minha irmã então me cedeu a tal capa de chuva que ela havia trazido. Só que ela não mencionou que era uma capa para crianças e não havia qualquer possibilidade de eu e minha mochila cabermos dentro dela! Lamentei ter devolvido a capa do peregrino! Demos o nosso jeito e seguimos.

Durante parte deste percurso caminhei sozinha e mais uma vez meus medos afloraram. Estava no meio de uma floresta e me perguntava onde eu estava com a cabeça quando topei a empreitada. Mas ao mesmo tempo a sensação de liberdade, de caminhar sempre para a frente por caminhos nunca percorridos é uma sensação maravilhosa, maior que o medo. E assim fui pela via XIX, depois de cruzar o rio Verdugo, e pela qual ainda se pode ver a marca das bigas que passaram pelas pedras, carregando as tralhas dos romanos.

Chegando em Pontevedra me reencontrei com minha irmã e fomos tentar comer algo, sem sucesso, pois os restaurantes fecham 15:00 e só reabrem às 20:00 quando já estaríamos na cama apagadas.

Mais um dia sem comer propriamente.

No dia seguinte seguimos cedo para Caldas de Reis. Dessa vez com um número maior de peregrinos nos acompanhando. Saímos sem café da manhã, mas programadas para tomar café numa localidade chamada Barro, indicada num guia que tínhamos como referência.

Nós e uma “pequena multidão” de peregrinos.  Ficamos um bom tempo na fila até chegar a nossa vez de pedir um sanduíche com jamon serrano absolutamente delicioso.

E estar na fila sem a mochila é engraçado, pois acostumamos com outro centro de equilíbrio e sem a mochila ficamos cambaleantes. Ao menos eu ficava.

Chegando em Caldas de Reis, que tem esse nome por ser o lugar de nascimento de Afonso VII de Leao e Castela em 1105, fomos para nosso hotel , Pousada Real, previamente reservado e de lá para um mergulho na piscina do Balneário Acuña, que restaurou nossas energias.

O hotel muito simpático. Os itens do café da manhã precisam ser escolhidos previamente. Os bolos caseiros são divinos. Recomendo.

Estávamos chegando ao final de nossa caminhada. Depois de Caldas de Reis o destino era Padrón lugar onde teria aportado o corpo de Santiago, através dos esforços de seus discípulos Atanásio e Teodoro, pois seria seu desejo ser enterrado na Hispânia.

Após pedir permissão para a rainha Lupa, rainha pagã, depois convertida, o apóstolo foi enterrado e depois seu corpo trasladado para onde hoje se encontra a Catedral de Santiago de Compostela.

Em Padrón escolhemos como pouso o hotel Pazo de Lestrove, uma construção do século XVI que já serviu de moradia para o arcebispo de Santiago.

O hotel é de uma beleza austera e onde pudemos aproveitar o sol de fim de dia na bela piscina. Também jantamos no restaurante do hotel onde também finalmente degustamos um excelente vinho Ribera del Duero.

No dia seguinte acordamos bem cedo e seguimos para nossa última etapa até Santiago antes do sol clarear o dia.

Animadas com a perspectiva da chegada, seguimos.

No caminho fomos encontrando companheiros de viagem, como uma família inteira fazendo o caminho juntos. Avó, mães, pais e crianças, uma ainda em carrinho de bebê. Graças a Deus, todos bem e felizes além de um grupo de jovens italianos acompanhados por um padre.

Aliás, a grande maioria dos peregrinos era de jovens. O caminho está vivo e cheio de juventude.

Caminhamos bem até chegarmos à capela de Nossa Senhora da Madalena, onde mais uma vez carimbamos nosso passaporte de peregrinas. Mas nesse momento o senhor que gentilmente carimbava os passaportes nos deu a “dica”e contornar a capela para vislumbrar as torres da Catedral. Foi um erro.

Naquele momento eu mentalmente já me condicionava para a visão de uma chegada e ao ver a distância das torres, meu psicológico simplesmente ruiu e um cansaço mortal se abateu sobre mim.

A sede aumentou vertiginosamente e minha água havia acabado até que vi uma academia de boxe pelo caminho.

Não tive dúvidas e entrei na academia e disse que precisava comprar água. Sem isso acho mesmo que não teria conseguido.

Algum tempo depois chegamos na praça de Compostela e simplesmente desabei a chorar. Não conseguia parar.

Contra todos as considerações da lógica, cheguei!

Se valeu? Muitíssimo!

Depois desta experiência e ter encontrado pelo caminho pessoas muito diferentes, posso concluir que cada um vive o caminho da forma que escolhe e é possível e todas são igualmente desafiantes e encantadoras.

Uns caminham por etapas, somente nos finais de semana, uns começam de muito mais longe, outros caminham sem mochila pois há serviços de carregamento de todo o material, mas seja lá como se escolhe, o caminhar é transformador.

3 comentários Adicione o seu

  1. Avatar de Claudia Torres Claudia Torres disse:

    mui bien!! A menina Violeta está de parabéns!! E até estou a pensar em fazer o caminho!! Adorei a aventura!

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  2. Avatar de Ricardo Del Castillo Ricardo Del Castillo disse:

    Demais viajante! Parabéns querida!

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  3. Avatar de Vera Valle Vera Valle disse:

    Parabéns cunhada, mais um sonho realizado. Bj

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